Juízes conselheiros do Tribunal Supremo manifestam-se agastados com alegadas violações constantes da lei por este órgão. Da polémica consta um rol de más práticas: o concurso de admissão de novos juízes conselheiros do Tribunal Supremo; o ingresso recente de mil funcionários nos tribunais sem concurso público e pela via do nepotismo; a rocambolesca eliminação da pronúncia contra o general Higino Carneiro por actos de corrupção; e o presidente da Câmara Criminal com mandato expirado há um ano.
O Maka Angola resume a polémica.
O concurso
O Tribunal Supremo contará, em breve, com mais oito juízes conselheiros que se juntarão aos 21 em funções. No passado dia 26 de Outubro, o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) abriu o concurso para a admissão dos novos juízes conselheiros, incluindo a controversa participação de juízes da primeira instância. Estes, por lei, estariam impedidos de participar. Nalguns casos, a justiça natural pode impor a participação de juízes a exercer funções de interesse público que exigem a presidência ou direcção de um magistrado. Mas, para se evitar a enorme celeuma, a situação deveria ter sido normativamente esclarecida.
Aparentemente, o CSMJ, liderado pelo também presidente do Tribunal Supremo, o brigadeiro na reserva Joel Leonardo, estribou-se no fundamento segundo o qual a Constituição não cria categorias de juízes. Assim, segundo a sua linha de raciocínio, restringir o acesso ao concurso a juízes desembargadores do Tribunal Supremo seria inconstitucional. Contudo, vários juízes conselheiros argumentam que a lei é clara nessa determinação (artigo 55.º da nova Lei Orgânica do Tribunal Supremo). Esta norma transitória, apesar de mal redigida (o mencionado artigo 55.º), exclui do concurso os juízes de primeira instância. Como é evidente, o presidente do Tribunal Supremo tem de cumprir a lei, e não corrigi-la. Se Joel Leonardo considera que a interpretação dessa lei é motivo de dúvidas, deve remeter o assunto à decisão do Tribunal Constitucional.
Alegadas violações da lei no Supremo
A polémica é ainda mais profunda e revela que o processo deliberativo no Tribunal Supremo foi capturado.
A 7 de Outubro, o plenário regular do Tribunal Supremo para o julgamento de processos confrontou-se com a intervenção de quatro juízes conselheiros, os quais acusaram a presidência deste tribunal e seus magistrados de cometerem alegadas ilegalidades.
Vejamos porquê. No plenário da semana anterior, após alguma polémica (com juízes a contestarem a necessidade de o Supremo contratar novos juízes conselheiros), tinha ficado aprovada a abertura de concurso para a admissão de oito juízes conselheiros. Depois, no referido plenário de 7 de Outubro, o brigadeiro Joel Leonardo decidiu introduzir um novo e extemporâneo tema: a admissão de ainda mais um juiz conselheiro – o nono –, o que gerou o caos nas deliberações do tribunal. Para se justificar, o presidente do Supremo deu a palavra ao director de Recursos Humanos, Diogo Gomes, que é cumulativamente seu director de gabinete interino. Este explicou ao órgão deliberativo que a morte do juiz conselheiro Belchior Samuco (2021), e respectiva extinção do seu vínculo salarial, abria uma nona vaga. Note-se, porém, que a vaga do juiz Samuco fora preenchida em 2012, uma vez que este se jubilara (aposentara) em 2010.
Segundo fontes bem colocadas, nesse momento a juíza Joaquina do Nascimento pediu a palavra e colocou uma única questão: “Até quando vamos continuar [no Tribunal Supremo] a violar as leis?”, declarando-se cansada de assistir a violações constantes da lei.
Por sua vez, a conselheira Anabela Vidinhas relembrou o seu juramento de posse, no Palácio Presidencial e diante do presidente da República, segundo o qual respeitaria a Constituição e as leis da República. Falou também, em tom agravado, sobre o seu cansaço por ver o Tribunal Supremo ser palco de alegadas violações da lei. “Começou a chorar, a tremer e a falar alto e teve de ser acompanhada para fora da sala para se acalmar”, explica uma testemunha.
Outros dois conselheiros, Norberto Capeça e Agostinho Santos, também alinharam contra a suposta violação das normas legais no Tribunal Supremo.
Essas intervenções levaram o vice-procurador-geral da República, Mouta Liz, presente para o julgamento de casos, i.e., para o exercício de competências jurisdicionais do Tribunal Supremo, a pedir a palavra. Informou os presentes sobre o dever da Procuradoria-Geral da República (PGR) de averiguar o que se passa no Tribunal Supremo face às declarações dos juízes conselheiros sobre a alegada violação reiterada das leis. Aconselhou o presidente do Tribunal Supremo a retirar da agenda o ponto sobre a admissão de um nono juiz para a instituição. É bizarro quando é um elemento da PGR a introduzir uma nota de bom senso nas deliberações exclusivas do Tribunal Supremo.
A despronúncia do general Higino Carneiro
No entanto, o caso mais marcante sobre as supostas ilegalidades no Tribunal Supremo é o arquivamento, em Maio passado, do processo contra o general Higino Carneiro por crimes de peculato e branqueamento de capitais, entre outros.
Um grupo de juízes conselheiros tem insistido para que seja agendada a discussão do caso em plenário do Tribunal. Um dos aspectos que fazem notar é que o processo do general Higino Carneiro havia sido atribuído ao juiz Aurélio Simba, que assim se tornou seu relator (ou seja, juiz de causa). No entanto, a despronúncia (o arquivamento) foi feita pelo juiz conselheiro Daniel Modesto Geraldes sem o conhecimento prévio do relator.
Sucessivamente, sempre que alguns conselheiros solicitam a discussão do caso (despronúncia do general Higino Carneiro), o brigadeiro Joel Leonardo recusa, alegando que o agendamento da questão seria uma sindicância (investigação por suspeita) aos actos de um juiz. Pelo contrário, nada diz quanto ao facto de o arquivamento do processo ter sido decidido por Daniel Modesto, que não era responsável pelo caso.
Na realidade, o que está em causa não é uma sindicância aos actos de um juiz, mas sim uma violação muito grave do princípio constitucional do juiz natural, uma das bases essenciais do processo penal justo e imparcial.
Quanto a Daniel Modesto, o seu mandato como presidente da Câmara Criminal expirou em Novembro do ano passado – há praticamente um ano –, e já deveria ter sido substituído. A sua permanência no cargo pode levantar questões de imparcialidade e legitimidade do tribunal. Ao mesmo tempo, a função de vice-presidente do Tribunal Supremo continua por preencher, porque o brigadeiro assim decide.
As mil vagas sem concurso público
O Ministério das Finanças abriu mil novas vagas para funcionários dos tribunais, incluindo oficiais de justiça. Segundo fontes do Maka Angola, na sua qualidade de presidente do Tribunal Supremo, o brigadeiro Joel Leonardo reiterou no plenário que não iria abrir concurso público para a admissão desses funcionários, mas regularizaria os casos dos administrativos em regime de contrato temporário. Alguns juízes conselheiros sugeriram, então, que se alocassem vagas a si mesmos e a uma selecção de magistrados para que pudessem contratar familiares seus desempregados. Uma proposta surreal, dir-se-ia. Mas assim se fez. As vagas foram preenchidas, na sua maioria, por pessoas que nunca trabalharam em tribunais. Vieram das respectivas casas, sem qualquer conhecimento sobre actos processuais de secretaria – muitos funcionários, incluindo no Tribunal Supremo, assim continuam. Um dos juízes distribuidores de empregos terá aproveitado a oportunidade para colocar nos tribunais e no Conselho Superior da Magistratura Judicial nada menos do que cem pessoas, entre familiares, amigos e filhos de amigos. Vários destes novos funcionários-parentes, acabados de chegar, beneficiaram já de apartamentos no Zango e viaturas.
Parece-nos evidente que há no Tribunal Supremo um grave problema de gestão deliberativa, bem como uma cultura despótica e clientelista, para os quais vimos alertando há vários anos. Este tribunal, por natureza, devia ser civil e permitir a discussão tranquila de posições na sua tarefa hercúlea de julgar, em primeira instância, os crimes de corrupção dos governantes.
Com uma gestão desastrada e truculenta, o poder judicial assume cada vez mais a reputação de um bar aberto, perdendo a credibilidade de que precisa para exercer as suas funções constitucionais. É a captura do sistema judicial e a conformidade com o ciclo de injustiças que perpetuam o enfraquecimento das instituições do Estado e a elevação dos brutos.
A situação exige que o principal garante do normal funcionamento das instituições – o presidente da República – exerça as suas funções constitucionais de magistratura de influência, no sentido de alterar o mais brevemente possível este insustentável cenário.